Contradiçoes num processo democrático : a prática do orçamento participativo nas cidades brasileiras

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Data
1999Autor
Fadul, Elvia Mirian Cavalcanti
Muniz, Reynaldo Maia
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A possibilidade de intervençao popular na identificaçao de necessidades, na escolha de prioridades e nas decisoes relativas aos investimentos municipais é a principal característica da prática conhecida como Orçamento Participativo. Geralmente apresentado enquanto alternativa aos modelos tradicionais de gestao das cidades, o processo de elaboraçao orçamentária de cunho participativo pretende estabelecer novos padroes de articulaçao entre os interesses organizados e o Estado, criando assim, novas condiçoes de governabilidade e de governance local. Ainda que apresentada como um avanço na democratizaçao e, conseqüente efetivaçao de uma maior equidade social, a discussao pública de parte do orçamento de investimentos nao é, por vezes, reconhecida nem legitimada pela instancia que, num sistema liberal democrático como o instituído pela Constituiçao de 1988 no Brasil, tem a funçao de agregar e processar os interesses representados pelos partidos, ou seja, o Legislativo. Com efeito, a abertura desse novo espaço de representaçao, pela via da participaçao direta, pretende conceder legitimidade ao Executivo para prescindir do Legislativo, ou no mínimo neutralizar seu poder de decisao nas políticas públicas. Desse modo, este processo aponta para um aprofundamento das tensoes entre esses poderes, já de per si bastante fortes, num sistema presidencialista, dada a bipolaridade que lhe é intrínseca. Tudo indica que é por razoes como esta, que algumas tentativas de implantar o Orçamento Participativo como, por exemplo, a da Prefeitura Municipal de Salvador, em que pese seu caráter democratizante, nao tem logrado exito, ao menos como experiencias de gestao capazes de dotar a alocaçao dos recursos públicos de maior eficácia e equidade social. Em qualquer circunstancia, os fatores que interferem na formulaçao de políticas públicas e que determinam o sucesso ou insucesso de sua implantaçao, sao múltiplos. Podem estar contidos no próprio contexto institucional, administrativo e financeiro, ou emergir do contexto político e sócio-economico, o qual condiciona a forma e a intensidade do acesso dos diferentes atores ao processo participativo. Podem, ainda, ser externos ao processo, situando-se num plano histórico mais amplo. As iniciativas de institucionalizaçao do Orçamento Participativo nas municipalidades brasileiras nao fogem a essa regra. Assim, devem ser enfocadas enquanto inseridas num espaço submetido à lógica de interesses conflitantes da sociedade, das esferas administrativas e das instancias de poder e, como fortemente condicionadas pelas formas jurídica e operacional com que se busca, e se buscou historicamente, conduzir o embate entre esses interesses em conflito. Como tentativa de associar democracia e participaçao à uma maior eficiencia e eficácia do Estado, a experiencia carrega contradiçoes internas e externas, suscitando importantes indagaçoes quanto à governabilidade e governance local. Partindo da análise dos aspectos doutrinários que fundamentam o Orçamento Participativo, este artigo procura examinar em que medida os requisitos jurídicos e operacionais impostos por estes aspectos doutrinários, dentro de um regime liberal-democrático, calcado na representaçao indireta, podem nao só atingir sua funcionalidade sistemica e, em conseqüencia, a governabilidade e a governance local, como também, de forma paradoxal, comprometer o próprio princípio que justifica a iniciativa de Orçamento Participativo: a possibilidade da interferencia popular na alocaçao dos recursos públicos.